Primeiro de Maio: o ofício e o benefício
Publicação: 01/05/2023
Artigo de Eliseu Gabriel, publicado na Folha de S. Paulo em 2003, em muitos aspectos, ainda é bem atual.
Os trabalhadores de todo mundo comemoram em 1º de Maio a consolidação de suas conquistas ao longo de séculos de luta.
A implantação de um regime socialista na Rússia, no início do século 20, acabou acelerando, em muitos países, conquistas operárias como a jornada de trabalho limitada, férias, aposentadoria garantida, assistência médica e outras.
No Brasil, Getúlio Vargas mudou a vida dos trabalhadores porque ergueu um projeto sociopolítico e econômico que libertou o povo brasileiro do atraso e do desprezo cultural das elites pelos que trabalhavam, herança maldita da escravidão, abolida poucas décadas antes. Ele cunhou uma frase simples, direta: “quem tem ofício, tem benefício”.
Essa frase expressou, ao longo de 19 anos, a essência da postura de seu governo com relação aos trabalhadores.
É de Getúlio a existência do salário mínimo, que era calculado levando em conta o custo mínimo necessário para sustentar o trabalhador e sua família. Aliás, isso é constitucional, mas parece que ninguém liga. Também garantiu estabilidade no emprego, jornada de trabalho limitada, férias remuneradas, aposentadoria. A carteira de trabalho é, ainda hoje, o principal símbolo de conquista do trabalhismo. Ironicamente, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e seus porta-vozes disseram acabar de vez com a “Era Vargas”, mas o seu candidato à sua sucessão usou a carteira de trabalho como símbolo de campanha eleitoral.
A elaboração e a implantação da legislação trabalhista teve a participação decisiva de líderes trabalhistas notáveis, como Alberto Pasqualini e Salgado Filho.
Após a queda do muro de Berlim, seguida da fúria avassaladora do neoliberalismo e do culto ao “deus” mercado, assiste-se em toda parte as tentativas de destruir as legislações trabalhistas que asseguram os direitos dos trabalhadores. Manifestações dos sindicatos europeus colocaram milhões de pessoas nas ruas de Roma, Berlim, Paris.
No Brasil, FHC tentou tirar vários direitos constantes da CLT e declarou, como já acima afirmado, que sua missão era demolir o que Getúlio havia deixado. Não conseguiu. Só mostrou que o que foi implantado no país pelos trabalhistas precisava ser mantido.
Não podemos sucumbir à ideia de que os direitos trabalhistas limitam os empregos. Os que achavam isso deram com os burros n’água. Países ditos emergentes que impuseram essa receita ao seu povo não conseguiram diminuir o desemprego e, pior, aprofundaram a concentração de riqueza e humilharam seus trabalhadores. Quem quer e precisa trabalhar para comer parece que, hoje em dia, é um estorvo. Para quê benefício, se não existe ofício?
Não há o que fazer se não buscarmos prioritariamente formas de estímulo à produção e ao crescimento econômico.
São o crescimento econômico quase nulo e os mecanismos concentradores de riqueza, não controlados pelo poder público, que têm levado o nosso país ao atual estágio de desemprego, ao encolhimento do mercado interno, à miséria, à violência, à exclusão social. Não é cortando benefício dos que ainda têm ofício que vamos resolver a situação.
Lula foi eleito pela ideia do trabalho, pela ideia das conquistas trabalhistas, pelo que ficou no “inconsciente imaginário” do povo brasileiro em relação ao respeito pela produção, pelo progresso, pela pátria. De certo modo, nessa última eleição, Lula encarnou GetúlioVargas. Este, além de lutar por direitos trabalhistas, tomava providências para gerar empregos.
O voto em Lula carregou a esperança de mudanças na área econômica, necessárias ao crescimento. São poucos meses, entendemos, mas nada nem sequer parecido com isso está acontecendo. As medidas tomadas até agora só garantem pagamento dos juros aos bancos. Entendemos que o Brasil precisa de reformas, mas o que está sendo proposto, ou o que se ameaça propor, é um escárnio. A reforma previdenciária prevê, entre outras coisas, a cobrança dos inativos. Inaceitável.
Fala-se em cortar despesas e não há nenhuma linha sobre as receitas. Onde está o dinheiro da Previdência utilizado pelos mais distintos fins por vários governos ao longo dos anos? O que se diz das receitas do INSS sonegadas, entre outras, por empresas terceirizadas que prestam serviços a órgãos públicos?Só algumas empresas de transportes que operam na cidade de São Paulo sonegaram R$ 2 bilhões, o que representa 20% de todo o Orçamento da cidade.Tampouco se estão revendo as isenções dadas a determinadas entidades das áreas de Ensino e Saúde. Os bancos quase não pagam contribuição sobre os lucros.
Enfim, nós que o apoiamos no segundo turno, ainda esperamos que Lula se preocupe mais em providenciar ofícios e menos em cortar benefícios.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo | Opinião, em 1º de maio de 2003